O quadro dentro do quadro ou a estrutura de quadros em abismo
Recebi um pequeno caderno e um CD de dados com reproduções de quadros. Virei as páginas do caderno. Passei as páginas fictícias do documento
Todos os quadros de Luís Rodrigues brandem a vontade de permanecer ao alcance do espectador de forma livre, pois não têm título, apenas as dimensões e os materiais aparecem como metatexto, isto é, um outro texto acerca da imagem inscrita que não deseja reconhecer-se numa etiqueta. Esta proposta abre o espaço de expectativa do espectador. Um título colocado numa tabuleta, numa vinheta acaba sempre por ocupar todo o espaço do quadro, apesar de normalmente ocuparem espaços físicos distintos e terem tamanhos distintos. O espectador da arte contemporânea, que está preocupado com a intenção do pintor, procura sempre confrontar a sua leitura à indicação, ao indício deixado pelo título da obra. Se por um lado, alguns autores já não optaram por um título evocador do trabalho realizado, procurando apenas criar estranhamento, outros procuraram enquadrar o seu trabalho num conjunto de um trabalho fornecido acerca de um único tema, ou ainda, por vezes, pretendem teorizar a obra, homenagear outro autor, etc., tecendo sempre um texto sobre outro. Todos estes textos são metatextos, pois falam acerca de outro texto que seria o próprio quadro e constituem o ponto de fuga do olhar, atestando a validade do mesmo. Se por um lado algumas indicações são fundamentais por razões de identificação e de estudo, por outro lado a maior liberdade é precisamente a de deixar ao espectador o espaço necessário para a sua visão. O quadro, depois de feito e exposto, é como o livro depois de entregue à editora, já não pertence ao seu autor, cabe ao espectador fazer a leitura, ter a visão do quadro. Não há proposta mais didáctica que aquela que consiste em ver e fazer o percurso da experiência estética. O artista expõe-se é esta a postura do artista contemporâneo: expor-se e assumir o peso da exposição, no sentido de ser visto, no sentido de se tornar um alvo. Contudo, se considerarmos o contexto histórico em que se cria, acredito que o artista contemporâneo é a seta e o alvo ao mesmo tempo. Recebi um livrinho de quadros pelo correio, virei as páginas, ao passar as páginas observei e vi as chuvas em pautas de Luís Rodrigues. São pautas de cinco ou quatro linhas, com manchas semelhantes a manchas poéticas, sobre um material simples, o cartão, e cores simples, o preto, o branco e o encarnado, e a escolha do vocábulo encarnado, em vez de vermelho não é inocente, são as cores da tradição dos pintores contemporâneos. São pautas, repetidas pacientemente, que apesar de se assemelharem a grades, não aprisionam, não limitam, não constrangem. O que há depois do quadro trabalhado e re-trabalhado? O regresso a cores básicas, cores ferramentas de todas as outras. Com o óleo não há matizes possíveis, é a sobreposição de camadas irremediáveis, é a dura realidade da pintura a óleo contemporânea, já não se deseja efeitos de luz, porque depois de cobrir tantas vezes a tela reencontramos as cores, o branco, o preto, o vermelho, contudo isto não imprime afastamento aos quadros, simplesmente, porque há a intimidade do quadro, a proximidade da casa que também é nossa.
Algumas telas são urdidas de fios numa vontade de tecer algo mais para além do visível. Evoca a quietude e a paciência de uma Penélope invisível ainda que persistente, a tecer os laços de um desejo de uma casa ideal que apenas existe fragmentada. É esta a paciência da casa, que se faz e desfaz. Mas a casa que construímos pouco a pouco e onde estamos, essa casa somos apenas nós. Há sempre algo mais que a construção da casa no sentido abstracto e isto remete para o interior da casa, o que há dentro da casa? Como é possível a casa? Para isso, há que fazer o percurso geral, aquele que indica um caminho para entrar dentro da casa.
O espaço das aguarelas é mais leve, simplesmente, porque o próprio material transmite essa leveza. Permanece o círculo e dentro do círculo a casa, e dentro da casa, exactamente, o que se encontra numa casa, sem ser os objectos do quotidiano, há o quotidiano
Ana da Palma
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